Entro cheio de expectativa... Bastaram poucas remadas adentro do mar para saber que fora correspondida.
Praia Mole, Florianópolis; 8:40 AM
Uma ondulação de leste quebrava perfeita e o crowd* estava tranquilo. Tudo para uma sessão alucinante.Cheguei exausto ao outside*, sentei sobre a prancha e respirei profundamente; fechando os olhos pude sentir toda a energia que convergia para aquela praia na forma de ondulação...
O ato de surfar é mágico, beira o transcendental. É encontrar-se consigo mesmo, deixar que o corpo manifeste e expresse quem você realmente é. Reconheço-me verdadeiramente quando surfo, sinto que as linhas desenhadas na ondulação escrevem a biografia mais sincera e verdadeira... A alguns metros de mim, outro recem chegado de dread looks fita-me com certa desconfiança e permanece a observar o horizonte esperando a onda perfeita. É o ritual que todos seguem, permanecer perante o majestoso oceano esperando a graça divina.
Então acontece. Uma crista surge marchando para a praia, uma tremenda direita. Sigo em sua direção com intuito de fazer parte desta obra prima de Netuno*, quando reparo que meu recém companheiro de dread está perfeitamente posicionado. De orelha a orelha abri um sorriso, sentei na prancha e comecei a aplaudir o espetáculo que viria. Ele desce com um tremendo sorriso estampado e segue rabiscando aquela que, naquele momento, é a onda do século. Viro-me para o horizonte e surge a minha chance de eternizar com rasgadas e batidas aquele momento. Ajeitar o bico, remadas, o impulso e... O regozijo. O drop* parece eterno e instantâneo; sentir que aquela fina tábua de fibra de vidro, resina e poliuretano passa a ser nada mais que uma extensão do corpo, a continuação dos pés. Seguir até o lip* e 'respingar no céu a água salgada do mar'. É quando ouço o brother do dread com o bordão "WOHOO"; fazer parte daquele momento é alucinante para todos.
Estamos na real democracia; credos, posição social, cor, escolaridade, emprego... Tudo é jogado na areia, como todo o resto das impurezas do mar (e não são aqueles as impurezas da dita 'civilização'?). Dentro d´água todos são e estão interligados, um único organismo pulsante cheio de vida e graça**. E a session* foi recheada de outros tantos momentos memoráveis... Eis a vida por detrás da sombras que seguimos enclausurados em uma caverna de Sócrates (Platão?) camuflada com o nome de 'Humanidade'.
Ao fim, cansado e feliz, segue-se a marcha insana da vida. Ou não; talvez nestes pequenos espasmos de expressão livre é que vivemos e, em todo o resto do tempo, estamos em estado latente, recuperando-se para viver novamente. Eu surfo, escrevo, sinto a adrenalina em mim. Outrem o sente interpretando, lendo, dormindo, cantando, cozinhando, desenhando ou sabe-se lá o que...
Como expressas o que és?
Mahalo
*Expressões e referências que fazem parte do universo do surfe; a significações são de fácil entendimento:
Crowd - densidade de surfistas na praia
Outside - 'lado de fora', região depois da arrebentação, área segura para a espera da onda
Netuno - o Deus dos mares na mitologia romana invocado pelos surfistas
Drop - 'cair', o ato de descer a onda já de pé sobre a prancha
Lip - Crista da onda
Session - 'sessão' de surfe
**Referência ao Surfer´s Code - 12 simple lessons for riddind through life de Shaum Tomson no capítulo All the surfers are joined by one ocean. Não li inteiro ainda; mas o livro é, inclusive para não surfistas, incrível. Recomendo com força.
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